O primeiro encontro do Cinema, Sujeitos e Territórios, de graça e aberto à comunidade (sempre!), aconteceu em abril de 2019. De encontro em encontro a metodologia e a noção de grupo se estabeleceu mais e mais. Abaixo, algumas palavras sobre o que defendemos e acreditamos.
UMA PEDAGOGIA DO CINEMA FORA DOS FILMES
Defendemos que a Pedagogia do Cinema não se encontra apenas nas imagens ou na obra audiovisual: ela é mais ampla do que a exibição de filmes e fragmentos. Muito se dá no processo das várias montagens, como vemos em Vertov, mas existem coisas que nos cativam mais que, ou tanto quanto, a própria obra cinematográfica – é por isso que não dizemos “pedagogia do filme” ou “pedagogia da imagem“, como querem outros autores.
Isso não quer dizer que as imagens não podem fazer parte do processo, elas podem. As imagens interessam à medida em que elas “estão aí”, bem como interessa qualquer outra coisa que também “esteja aí“. Interessa um texto no papel, interessa uma fala jogada para a roda, interessa uma troca de olhares entre duas pessoas, interessa uma memória, interessa o som de uma palma – se está fora, no mundo, interessa, não por si mesmo, mas por poder funcionar como elemento comum entre dois sujeitos e provocar um encontro entre eles. Só começamos a falar de Pedagogia a partir destes encontros entre dois (ou mais) sujeitos: encontro não entre alguém e uma imagem, mas entre alguém e alguém – independentemente da causa e do modo.
Cinema, pensado nessa junção Cinema-Educação, nos parece muito mais a mobilização de um conjunto de relações; uma teia de articulações entre pessoas, lugares, opiniões, desejos, discursos, aparatos, determinadores, crenças, enfim, isto é, há sim muito de “cine-olho” no Cinema e no Cinema-Educação (no sentido proposto pelo Dziga Vertov de que ocorre aí a ligação entre quaisquer dois pontos do universo): mas já não falamos mais de um cine-olho que se esgota como imagem-movimento ou como um modo diferente de ver. A ligação entre quaisquer dois pontos do universo através do Cinema não se dá na montagem, no enquadramento, na lente, enfim, nas outras propriedades atribuídas classicamente ao cine-olho de Vertov – nem só no ato de produção da imagem e nem só no ato e assisti-la, mas sim quando eu e você entramos em relação de alteridade.
UMA PEDAGOGIA DO NÃO-ENSINO
Descartamos qualquer noção de Pedagogia do Cinema que tenha como objetivo ensinar. É evidente que há, em relações de alteridade, algum nível de troca e circulação e saberes, mas o termo ensinar é tão desgastado na Educação que pode ser melhor descartá-lo que buscar ressignificá-lo. Talvez faça sentido apenas falar de ensinar-se, como em “o aluno não precisa de um professor ensinando-lhe algo para que o aprenda, pois ele, o próprio aluno, pode ensinar-se”, uma vez que, neste caso, a partícula “ensinar” se coloca como um ataque que invalida seu próprio uso historicamente enraizado. A noção de Pedagogia que propomos é, assim, baseada em proporcionar experiências, mas não para com elas ensinar, e nem para com elas aprender: o objetivo é apenas proporcionar uma experiência, e o que cada um vai tirar dela depende quase nada de qualquer um que não seja quem a ela se sujeita.
Se alguém aprender algo com a experiência proporcionada, foi, portanto, porque ensinou-se. Ensinou-se o quê? Não sabemos, ora. Não podemos controlar. Dizia o filósofo Gilles Deleuze, “numa aula, cada grupo ou cada estudante pega o que lhe convém. Uma aula ruim é a que não convém a ninguém. Não podemos dizer que tudo convém a todos. As pessoas têm de esperar”. O esforço da educadora é o de mobilizar estas experiências despreocupadamente, sem objetivos, temas, lugares para chegar, coisas para se ensinar, etc, uma vez que adotar alguma destas linhas seria retirar o espaço dado ao aluno de ter a sua própria experiência estética.
Ter uma destas experiências, isto é, vivenciar um encontro, é exercer humanidade, verificar os princípios que fazem o humano ser humano: sobretudo, o (livre) jogo entre as faculdades sensíveis e racionais. Encontramos aí a igualdade que orienta esta pedagogia, uma que só precisa ser verificada. “É”, diz Jacques Rancière, “uma questão política: saber se o sistema de ensino tem por pressuposto uma desigualdade a ser reduzida ou uma igualdade a ser verificada”.
METODOLOGIA: COMO SÃO OS ENCONTROS
Para dar conta dos nossos objetivos, utilizamos três propostas pedagógicas como ponto de partida: dinâmicas , dispositivos e exibições pedagógicas.
Uma dinâmica , que geralmente propomos como a primeira atividade de cada encontro, é algo que se aproxima de uma brincadeira: uma atividade prática que desloca o grupo para uma maneira criativa de pensar. Com elas, as pessoas se soltam, sentem-se à vontade, e ativam linhas criativas que consideramos essenciais tanto para a produção ou recepção de qualquer material audiovisual, quanto para encarar o processo de aprendizagem de um encontro.
Um dispositivo é uma proposta de problema que precisa ser solucionado. Cada dispositivo demanda alguma coisa – a criação de um ou mais vídeos, a criação de uma ou mais fotos, etc –, com a importante característica de que cada dispositivo é um conjunto de regras. Não se pode confundir um dispositivo com um exercício qualquer porque um dispositivo trabalha com limites . Entendemos que colocar um problema e pedir qualquer solução significa abrir margem para utilizar qualquer resposta, geralmente a mais fácil, a mais clichê, a que demanda o mínimo de criatividade. Por isso, limitamos as respostas possíveis: em certos dispositivos, não se pode, por exemplo, filmar por mais que um minuto; em outros, não se pode filmar rostos; em outros, só se pode filmar espaços vazios; etc. Os limites dentro dos dispositivos dão espaço para germinar ideias e ultrapassar um campo comum na construção de imagens e sons.
Trabalhamos ainda com exibições pedagógicas – quer se trate do material produzido pelo grupo a partir dos dispositivos, quer se trate de filmes que levamos –, realizando uma discussão horizontal. O material é projetado e deixamos o grupo falar. Chamamos de “exibição pedagógica” ao invés de meramente “exibição” para dar conta do processo do “grupo”. A noção de grupo adiciona muitas coisas à de exibição: o silêncio, a roda, a falta de temas, a falta de requisitos formais ou conteudistas em cima do material exibido (não precisa ser um “bom filme”), a falta de lugares (como os de convidados), etc.
Depois de cada encontro, enviamos a todos os participantes um texto sobre as atividades. Esse é um ponto importante, pois se configura como uma extensão do encontro. Por meio dele, relatamos os acontecimentos do encontro e tentamos estruturar alguns dos conhecimentos que o grupo criou coletivamente em experiência estética. Esses relatos podem ser lidos na página “Experiências”.
LEIA O PROJETO PEDAGÓGICO EM PDF CLICANDO AQUI.
Texto por Ana Luísa Mariquito Reis e Keven Fongaro Fonseca, 2019.